UMA CONVERSA SOBRE LEGADO E VALOR: A Ghost Story e Brás Cubas

Argos Crítica
7 min readSep 15, 2021

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Por: Carlos Anselmi

Legado: palavra que vem do latim legatus, onde tem seu sentido histórico e prático de testamento ou herança, mas também carrega a conotação de “o que se passa às gerações” por meio da transmissão de valores. E é quase irônico como a humanidade, em meio a nossa observável pequenez, se importa tanto com o que deixará, mesmo que seja infinitamente insignificante ao analisarmos o universo como um todo.

Mas é importante pontuar o que é o valor em si, que se pretende transmitir. O que tem valor para mim não é o mesmo para você. Este ponto difere coletivamente entre classes, cores, orientações, e também individualmente dentro do coletivo. A própria arte funciona assim, por meio do valor não fungível. É algo que carrega o que nos importa, e não tem relação direta com preço.

Talvez também seja por isso que passamos o sobrenome da família para os filhos, que fazemos arte, que escrevemos, que acumulamos, e que atribuímos valor. Observar o vazio da existência faz com que a humanidade se importe em dar significado às coisas. Não aceitar a finitude nos faz deixar uma parte nossa em coisas que continuarão depois.

E é interessante quando a própria arte, que carrega esse valor de alguém, discute justamente este legado em algum grau. E é aqui que começamos nosso texto.

I. Emplasto Brás Cubas.

Machado de Assis, ao dar início no realismo brasileiro com o romance “Memórias Póstumas de Brás Cubas” (1881), que se passa em um Brasil influenciado pelo positivismo, nos apresenta ao homem que, em certo momento da vida, pesquisa uma medicação que cure a melancolia. Brás Cubas, o “defunto-autor” é um personagem da elite brasileira, e tem nesta busca por legado, uma fase da vida retratada em seu livro póstumo. É simbólico que o homem busque um fármaco que cure a hipocondria, tentando aliviar a melancolia humana. Mas sabemos que sua intenção não era a cura, e sim o “amor à glória”.

Machado de Assis

A ideia de desenvolver o medicamento tinha como intuito estampar seu nome nas caixas, criar o “Emplasto Brás Cubas”. É sobre deixar sua marca exposta, e consequentemente, seu legado. Machado de Assis buscava escancarar, com ironia, a sujeira burguesa da sociedade naquela época. Mas aqui, pensemos mais especificamente sobre o que Brás buscava.

O homem queria deixar um legado. Brás não sucedeu em nada. Em suas negativas não desenvolveu o emplasto, não foi ministro e não casou, e ironicamente, dedica sua escrita ao verme que primeiramente roeu seu cadáver. E por um instante, até parece que, finalmente, há a aceitação da finitude:

“Não tive filhos, não transmiti a nenhuma criatura o legado da nossa miséria.”

Mas há outro fator. Ainda que morto, Brás Cubas conta sua história, e em morte, deixa seu nome registrado como não conseguiu em vida. No pessimismo característico do autor, é notável que o legado humano não foi passado para uma nova geração ou criatura, mas este despertar acontece pensando no outro e não em si. Ao voltar internamente para o indivíduo, a necessidade de se estabelecer, mesmo morto, é o que dá valor a sua obra. Valor que ele via em si como grande demais para não ser deixado.

Foi na arte póstuma que o objetivo do personagem, de ter seu nome registrado para a “eternidade”, se conclui. É claro que estamos discutindo valores de um personagem ficcional, a escrita real é de Machado, mas vale o exercício da obra póstuma. Então, uma vez que sua vida já passou, e isso tem valor unicamente para Brás, qual o sentido de se apegar a isso?

Aqui, vemos um personagem que, morto e apegado a vida, deixa seu legado escrito enquanto assume não ter deixado nada. E agora, talvez outras perspectivas a respeito do tema possam abrir mais caminhos sobre a necessidade de deixar algo.

II. A Ghost Story (C)

Em “A Ghost Story” (no Brasil, Sombras da Vida), de 2017, o tema do legado é um dos fios condutores da obra, somado à efemeridade, à contemplação e consciência da finitude, abordados por David Lovery.

A Ghost Story (2017) — David Lovery

No filme, C (Casey Affleck) é um músico e assim como Brás — e provavelmente toda a humanidade — busca deixar seu legado para a posteridade. A diferença aqui, por mais sutil que possa ser, é que este não quer o seu nome propriamente dito (que nem nos é apresentado) mas sim sua obra. O maior combustível para grande parte de quem faz este tipo de arte é justamente ter algo para dizer, é colocar os pensamentos para fora, materializando o intangível e não necessariamente sua marca nominal, mas sua visão de mundo.

C vive com M (Rooney Mara), o homem morre precocemente, e a partir daí vaga preso em sua casa como um fantasma que assiste a vida de sua companheira, silenciosamente. Aqui, o conceito da efemeridade é reforçado e colocado em prova de acordo com a perspectiva de tempo do personagem, valorizando os momentos de contemplação.

O personagem de Casey partiu fisicamente mas, neste filme, tem a oportunidade de ver a vida continuar sem sua presença e sua percepção do mundo é ampliada. Ao observar sua (ex) esposa comendo uma torta, a projeção nos toma longos minutos, mostrando a monotonia de quem está aprendendo a perceber que já não se faz mais presente. Ao passo que, por outro lado, vemos milênios passando proporcionalmente em muito menos tempo, reforçando o valor subjetivo que as ações podem ter. Sua vida com M tem muito mais valor que toda a eternidade que presencia e observa. Mas simultaneamente, ele a assiste seguindo em frente, ao perceber que é apenas vivendo que os traumas vão ficando para trás, mas com isso o “legado” também. Ou seja, o que fica tem realmente tanto valor assim?

Acontece que, em dado momento, M coloca os fones de ouvido para ouvir uma música que C havia escrito. E é exatamente neste momento que o casal se toca, estando em contato novamente. Se Brás Cubas quer seu emplasto para deixar algo por seu traço mais vaidoso, C que deixar algo para se manter em contato com quem (e a partir do que) ama. Não que não haja vaidade nisso, mas aqui, uma parte do foco está mais diretamente ligada no outro. Uma obra não existe sem alguém para contemplá-la.

M (Rooney Mara) em “A Ghost Story” (2017)

Mas, ainda que os acontecimentos se passem pelo ponto de vista de C, explicitados pelo enquadramento, M também quer deixar algo, e temos então uma terceira perspectiva.

III. A Ghost Story (M)

A personagem de Rooney Mara, deixa pequenos bilhetes nas casas onde mora para si própria. Quase como uma fotografia, o que M busca deixar tem fim nela mesma, o que é deixado tem função de registro e memória particular.

C (Casey Affleck) em “A Ghost Story” (2017)

E é curioso o legado introspectivo de M contraposto com o dos homens citados anteriormente. Homens nascem e crescem ensinados que devem dominar, prover, procriar e construir. Se no passado o “legado” deixado estava relacionado a passagens dos genes e garantia de sobrevivência, na sociedade organizada capitalista, pode estar ligado justamente ao fato de não aceitar o fim.

M, porém, não está preocupada com isso. Como é visto, os dias passam e ela segue em frente assim como todo o resto. As lembranças são fagulhas de bons momentos guardados na mente mas que, após servirem para este propósito, podem ser colocadas de lado. E não vejo isso como falta de ambição, mas sim como um contraponto saudável que deveria ser buscado por tantos outros.

E ao observar o bilhete de M, C vê um pedaço dela na casa. O que, no filme, é colocado em perspectiva quase que exaustivamente, reforçando a efemeridade de tudo, tem valor para C. A casa é mostrada como a construção, há o passado e diferentes histórias antes dela, e o futuro onde o mesmo espaço é ocupado e a edificação passada ignorada. O pequeno pedaço de papel na parede, mesmo depois de toda a insignificância da nossa passagem, ainda tem valor para C, porque é ali que consegue se conectar com M, assim como o contrário por meio da música.

Aqui, através do que M deixa, mesmo sem intenção, o valor da casa é explicitado na individualidade do apreço de C, pela casa, pelo bilhete e a memória. O que é insignificante no contexto maior é importante para um.

IV. Legado e valor

Brás Cubas quer deixar sua marca para sempre, para ser lembrado. C quer se expressar e deixar suas palavras para quem ama. M quer colecionar pequenas memórias e seguir em frente. E o que se pode tirar disso?

As respostas, assim como o desejo pelo que se deixa são variáveis e, em certo grau, individuais. Porém, talvez seja importante perceber, ao relacionar estes personagens que a importância não residia necessariamente no que fica, porque evidentemente e incontrolavelmente tudo vai passar, tudo passa. O que realmente dá valor para algo é como nos conectamos com algo. É sobre aproveitar os pequenos momentos enquanto estamos presentes.

Muito provavelmente (e ainda bem, visto a angústia de ambos) não teremos a oportunidade de assistir ou comunicar o que deixamos depois de partir. Mas se temos controle de uma coisa, é como construir as conexões que tem valor no agora. Como isso no aproxima de quem nós somos e do que amamos, e se o que deixamos tem algum valor, é apenas no outro.

We build our legacy piece by piece.

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