The Irishman e o “seu” tempo.
Por: Carlos Anselmi.
PARTE I — O “seu” tempo.
Sempre que assistimos a um filme algumas reflexões são mais rápidas de tirar: se gostamos ou não; recomendaríamos ou não; gostaríamos de ver mais uma vez ou não. Todos esses pontos estão diretamente ligados ao nosso íntimo e em como uma obra conversa conosco. Porém, alguns fatores ditam o nosso gosto e é interessante buscar entender pontos que influenciam neles.
Ao pensarmos na experiência de consumir algo, podemos cair na falácia de que gosto é um processo apenas individual. Na lógica capitalista, a oferta de algo não existe apenas para suprir uma demanda, a estratégia utilizada é criar o desejo, para em seguida ofertar este produto. Entender o que cerca os nossos gostos e desejos é parte fundamental para um processo de compreensão que não nos tira completamente deste ciclo, mas que abre nossos olhos como consumidor do que quer que seja, mesmo que de arte.
O mundo em que estamos inseridos nos pede urgência e atenção constantes, e em todo o tempo existe a cobrança para sermos produtivos. Pensamos que tudo deve atender ao nosso gosto “existem milhares de opções, não vou perder tempo com algo que não me agrada”, queremos consumir tudo e este “tudo” tem que ser do nosso jeito, adaptado a nossa pressa, com os serviços que consumimos nos adequando à esta realidade.
Naturalmente, a arte como produto não foge desta lógica. Por isso, o discurso mais comum que vemos é “o que importa é se eu gostei”. Bom, isso realmente importa, e é um tanto quanto óbvio. Mas nem tudo que vale a pena é um produto encaixado nos nossos padrões de desejo que foram criados. O propósito da arte não é apenas agradar um consumidor, o incômodo também faz parte do aprendizado, e a mensagem pode ir além da nossa primeira impressão.
Tudo isso está diretamente relacionado ao conceito de tempo. E este tempo é visto como algo que não pode ser desperdiçado ou mesmo sentido, e sim aproveitado (e digo aproveitado com conotação de eficiência).
Então, gostaria de trazer uma reflexão sobre a nossa perspectiva de tempo a partir de uma obra (-prima): “The Irishman” (bra: O Irlandês) de 2019. Tanto da nossa experiência de passar o tempo assistindo, quanto do que podemos aprender ao analisamos o modo que o tempo é transmitido por ele.
PARTE II — O Irlandês
“Oh, boy, You don’t know how fast time goes by until You get there.”
Começo esta parte do texto com uma afirmação um tanto quanto ousada: O Irlandês é um filme essencial para a história do cinema. Martin Scorsese é um dos maiores nomes do cinema atual e algumas de suas obras mais notórias contam histórias de máfia, uma vez que o diretor revela que estava cercado por este meio na vizinhança onde cresceu . Este sub gênero nos presenteou com grandes obras, várias delas inclusas nas listas mais reconhecidas de melhores filmes de todos os tempos, como a Trilogia Godfather de Francis Ford Coppola, GoodFellas, e Cassino de Scorsese.
Estes filmes foram produzidos em um determinado período da história. Uma época sem serviços de streaming, onde os diretores e atores se encontravam na agilidade da juventude e com uma realizade orçamentária e ambição dos estúdios completamente diferente. Se antes, com a crítica especializada auxiliando como guia de sucesso, um filme buscava contar uma história da melhor maneira possível para conseguir prestígio, hoje alguns filmes buscam o entreterimento que é mais fácil de assimilar dentro da realidade atual para conseguir alcançar as metas estabelecidas, onde algumas obras são quase que assumidamente apenas um produto lucrativo.
Neste contexto, O Irlandês foi rejeitado por diversos estúdios, uma vez que estes não viam no filme a facilidade de lucro em comparação com outros longas. Mais uma vez aqui, somos levados a lógica da eficiência como prioridade, porém dessa vez dos estúdios em relação a obra. Quase que ironicamente o filme foi aceito e produzido como um produto original Netflix, uma das empresas responsáveis pela mudança de paradigma que vivemos nos últimos anos. Finalmente, Martin Scorsese teve a oportunidade de encerrar brilhantemente o ciclo dos filmes de máfia, mas como fez isso?
O diretor, assim como alguns dos atores do filme: Robert DeNiro, Joe Pesci e Al Pacino, envelheceram. Viram o tempo passar, as mudanças da indústria, e nosso gosto se modificando e adequando conforme o mercado dita. E mesmo sabendo que nos dias atuais as produções mais lucrativas são rápidas, cheias de ação ou comédia, Scorsese segue na contramão. O filme então, graças a montagem de Thelma Schoonmaker, tem um ritmo lento, e vai contra toda a agilidade que consumimos. Há longos takes silenciosos e contemplativos, e os 210 minutos da projeção tem o propósito de te fazer sentir essa demora.
Dessa vez, o filme utiliza do gênero dos filmes de máfia como um artifício para apresentar um tema muito maior: a consequência inevitável da passagem do tempo, onde nada pode escapar.
E qual o melhor meio de tentar mostrar essa passagem do tempo do que nos fazendo sentí-la? O filme emula a vida, e as quase 4 horas de projeção se fazem extremamente necessárias dentro do que é pretendido. A vida começa e somos apresentados ao mundo, chegamos ao auge da nossa disposição e ao final, vemos o que conhecíamos ir acabando, como se tudo tivesse passado num piscar de olhos, e então lentamente vemos tudo passar na fase da velhice.
O Irlandês tem a brilhante escolha de te entregar o climáx em determinado momento e depois reduzir o ritmo do filme, criando uma sensação de “eu já vi o final da história, porque não acaba?”. É justamente porque a vida não acaba naturalmente junto com as nossas ambições e conquistas. O diretor aqui consegue mostrar e fazer sentir a passagem do tempo para uma geração que não sabe mais o que é esperar.
Considero essa experiência como uma das coisas mais lindas que tive o privilégio de ver no cinema (sem interrupções, como eu concordo que deve ser visto). O filme nos tira do lugar de conforto e nos obriga a sentir o que o protagonista sente. Nos confronta com a nossa própria existência e nos ajuda a entender e a apreciar o valor da mensagem por mais que a experiência não se enquadre exatamente no que vivemos (ou esperamos) boa parte da nossa juventude. Isso, enquanto não percebemos o quão rápido o tempo passa. Até vermos que tudo já passou.
O diretor e os atores envelheceram, a indústria mudou, a distribuição dos filmes mudou e tudo chega a um final. E é incrível como está tudo presente no mesmo filme. O longa marca o início da era dos streamings como grandes competidores no mercado e nas premiações, e ao mesmo tempo o “fim” como homenagem a ao gênero que fundamentou muito do que conhecemos como Cinema.
Hoje os filmes de sucesso tem um ritmo diferente, e a realidade em que estão inseridos é mais diferente ainda. E enquanto essa nova porta se abre, uma era se encerra tendo em O Irlandês seu grande marco. Porém, sabemos que essa porta não se fecha completamente. Sempre poderemos revisitar, e sempre haverá quem faça arte para passar uma mensagem maior. Façamos como o protagonista Frank Shreeran pede: deixemos essa porta entreaberta.