The Irishman e o “seu” tempo.

Argos Crítica
5 min readJan 11, 2021

Por: Carlos Anselmi.

PARTE I — O “seu” tempo.

Sempre que assistimos a um filme algumas reflexões são mais rápidas de tirar: se gostamos ou não; recomendaríamos ou não; gostaríamos de ver mais uma vez ou não. Todos esses pontos estão diretamente ligados ao nosso íntimo e em como uma obra conversa conosco. Porém, alguns fatores ditam o nosso gosto e é interessante buscar entender pontos que influenciam neles.

Ao pensarmos na experiência de consumir algo, podemos cair na falácia de que gosto é um processo apenas individual. Na lógica capitalista, a oferta de algo não existe apenas para suprir uma demanda, a estratégia utilizada é criar o desejo, para em seguida ofertar este produto. Entender o que cerca os nossos gostos e desejos é parte fundamental para um processo de compreensão que não nos tira completamente deste ciclo, mas que abre nossos olhos como consumidor do que quer que seja, mesmo que de arte.

O mundo em que estamos inseridos nos pede urgência e atenção constantes, e em todo o tempo existe a cobrança para sermos produtivos. Pensamos que tudo deve atender ao nosso gosto “existem milhares de opções, não vou perder tempo com algo que não me agrada”, queremos consumir tudo e este “tudo” tem que ser do nosso jeito, adaptado a nossa pressa, com os serviços que consumimos nos adequando à esta realidade.

Naturalmente, a arte como produto não foge desta lógica. Por isso, o discurso mais comum que vemos é “o que importa é se eu gostei”. Bom, isso realmente importa, e é um tanto quanto óbvio. Mas nem tudo que vale a pena é um produto encaixado nos nossos padrões de desejo que foram criados. O propósito da arte não é apenas agradar um consumidor, o incômodo também faz parte do aprendizado, e a mensagem pode ir além da nossa primeira impressão.

Tudo isso está diretamente relacionado ao conceito de tempo. E este tempo é visto como algo que não pode ser desperdiçado ou mesmo sentido, e sim aproveitado (e digo aproveitado com conotação de eficiência).

Então, gostaria de trazer uma reflexão sobre a nossa perspectiva de tempo a partir de uma obra (-prima): “The Irishman” (bra: O Irlandês) de 2019. Tanto da nossa experiência de passar o tempo assistindo, quanto do que podemos aprender ao analisamos o modo que o tempo é transmitido por ele.

PARTE II — O Irlandês

Frank Sheeran (Robert DeNiro)

“Oh, boy, You don’t know how fast time goes by until You get there.”

Começo esta parte do texto com uma afirmação um tanto quanto ousada: O Irlandês é um filme essencial para a história do cinema. Martin Scorsese é um dos maiores nomes do cinema atual e algumas de suas obras mais notórias contam histórias de máfia, uma vez que o diretor revela que estava cercado por este meio na vizinhança onde cresceu . Este sub gênero nos presenteou com grandes obras, várias delas inclusas nas listas mais reconhecidas de melhores filmes de todos os tempos, como a Trilogia Godfather de Francis Ford Coppola, GoodFellas, e Cassino de Scorsese.

Estes filmes foram produzidos em um determinado período da história. Uma época sem serviços de streaming, onde os diretores e atores se encontravam na agilidade da juventude e com uma realizade orçamentária e ambição dos estúdios completamente diferente. Se antes, com a crítica especializada auxiliando como guia de sucesso, um filme buscava contar uma história da melhor maneira possível para conseguir prestígio, hoje alguns filmes buscam o entreterimento que é mais fácil de assimilar dentro da realidade atual para conseguir alcançar as metas estabelecidas, onde algumas obras são quase que assumidamente apenas um produto lucrativo.

Neste contexto, O Irlandês foi rejeitado por diversos estúdios, uma vez que estes não viam no filme a facilidade de lucro em comparação com outros longas. Mais uma vez aqui, somos levados a lógica da eficiência como prioridade, porém dessa vez dos estúdios em relação a obra. Quase que ironicamente o filme foi aceito e produzido como um produto original Netflix, uma das empresas responsáveis pela mudança de paradigma que vivemos nos últimos anos. Finalmente, Martin Scorsese teve a oportunidade de encerrar brilhantemente o ciclo dos filmes de máfia, mas como fez isso?

O diretor, assim como alguns dos atores do filme: Robert DeNiro, Joe Pesci e Al Pacino, envelheceram. Viram o tempo passar, as mudanças da indústria, e nosso gosto se modificando e adequando conforme o mercado dita. E mesmo sabendo que nos dias atuais as produções mais lucrativas são rápidas, cheias de ação ou comédia, Scorsese segue na contramão. O filme então, graças a montagem de Thelma Schoonmaker, tem um ritmo lento, e vai contra toda a agilidade que consumimos. Há longos takes silenciosos e contemplativos, e os 210 minutos da projeção tem o propósito de te fazer sentir essa demora.

Dessa vez, o filme utiliza do gênero dos filmes de máfia como um artifício para apresentar um tema muito maior: a consequência inevitável da passagem do tempo, onde nada pode escapar.

E qual o melhor meio de tentar mostrar essa passagem do tempo do que nos fazendo sentí-la? O filme emula a vida, e as quase 4 horas de projeção se fazem extremamente necessárias dentro do que é pretendido. A vida começa e somos apresentados ao mundo, chegamos ao auge da nossa disposição e ao final, vemos o que conhecíamos ir acabando, como se tudo tivesse passado num piscar de olhos, e então lentamente vemos tudo passar na fase da velhice.

O Irlandês tem a brilhante escolha de te entregar o climáx em determinado momento e depois reduzir o ritmo do filme, criando uma sensação de “eu já vi o final da história, porque não acaba?”. É justamente porque a vida não acaba naturalmente junto com as nossas ambições e conquistas. O diretor aqui consegue mostrar e fazer sentir a passagem do tempo para uma geração que não sabe mais o que é esperar.

Considero essa experiência como uma das coisas mais lindas que tive o privilégio de ver no cinema (sem interrupções, como eu concordo que deve ser visto). O filme nos tira do lugar de conforto e nos obriga a sentir o que o protagonista sente. Nos confronta com a nossa própria existência e nos ajuda a entender e a apreciar o valor da mensagem por mais que a experiência não se enquadre exatamente no que vivemos (ou esperamos) boa parte da nossa juventude. Isso, enquanto não percebemos o quão rápido o tempo passa. Até vermos que tudo já passou.

O diretor e os atores envelheceram, a indústria mudou, a distribuição dos filmes mudou e tudo chega a um final. E é incrível como está tudo presente no mesmo filme. O longa marca o início da era dos streamings como grandes competidores no mercado e nas premiações, e ao mesmo tempo o “fim” como homenagem a ao gênero que fundamentou muito do que conhecemos como Cinema.

Hoje os filmes de sucesso tem um ritmo diferente, e a realidade em que estão inseridos é mais diferente ainda. E enquanto essa nova porta se abre, uma era se encerra tendo em O Irlandês seu grande marco. Porém, sabemos que essa porta não se fecha completamente. Sempre poderemos revisitar, e sempre haverá quem faça arte para passar uma mensagem maior. Façamos como o protagonista Frank Shreeran pede: deixemos essa porta entreaberta.

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