Por que Kanye West é o maior artista da história contemporânea? Parte I.

Argos Crítica
13 min readSep 17, 2021

Por: Carlos Anselmi

I’ve been telling y’all since ’05: the greatest artist resting or alive.

Kanye Omari West, quando criança

Três coisas comuns pra quem já acompanha meus textos aqui: geralmente escrevo sobre cinema, costumo avisar que os textos (inclusive os com filmes inseridos) não são muito longos, e gosto de colocar mais questionamentos que afirmações. Hoje, (assim como o artista que falarei sobre no texto) vou ir pelo caminho oposto do que é o mais comum de se fazer.

Este não é um texto sobre cinema, este é um texto longo (mas que acredito que precise ser), e ainda que eu tenha usado uma interrogação, a pergunta não é sobre a o questionamento em si, mas sim como esta afirmação pode estar certa. Então antes de qualquer pergunta: Kanye West pode ser considerado o maior artista da história contemporânea. Agora vamos ao porquê.

KANYE WEST

O que faz um artista? Como escolher um parâmetro para definir a qualidade de algo? Qual o embasamento utilizado para afirmar qualquer coisa com convicção? Se você já conhece nosso trabalho, e principalmente nossa visão sobre subjetividade e análise crítica, provavelmente já sabe o que sempre afirmamos: não há uma verdade absoluta, ou uma regra que se aplique em arte, ou qualquer conceito estritamente objetivo para afirmar coisas assim. O título do texto é realmente chamativo, e usarei do corpo da argumentação para embasar o ponto, mas isto não é algo definido ou absoluto (que fique claro). E como sempre, também fugimos do “afirmo isso apenas porque gosto”. Isso já não seria óbvio? Se fosse apenas este ponto, bastaria um “gosto muito das músicas de Kanye West”, mas aí não teria o texto, e não teria argumento.

Portanto, é importante pontuar o caminho que vou percorrer no decorrer do texto, e tão importante quanto: o que (e o que não) considero importante. E ao final da leitura, seja livre para concordar ou discordar. Vamos começar com popularidade:

POPULARIDADE E PREMIAÇÕES

Inicialmente, a popularidade é um fator no qual tendo a desconsiderar razoavelmente quando relacionado à qualidade. Um simples exemplo como as eleições brasileiras de 2018 já nos mostra que fazer essa relação não é o melhor caminho. Mas se pensarmos em relevância, este, objetivamente, é um fator.

Por diversas razões, não é possível que se faça qualquer debate ignorando figuras popularmente históricas. É impossível falar de sociologia (se você propõe um debate sério) sem citar Marx, e, analogamente, é impossível falar da política atual sem citar a família Bolsonaro. Pode-se amá-los ou odiá-los, mas é impossível ignorar, feliz, ou infelizmente. O mesmo acontece com Kanye West e não apenas como músico, mas como artista no geral.

Ye se encontra entre os 9 artistas que mais venderam músicas em formato digital na história (o recordista ‘Donda’ de 2021 ainda não entra nos cálculos quando este texto foi escrito). Kanye West possui mais de 140 milhões de discos vendidos ao redor do mundo, e além disso, o artista também se encontra entre os maiores vencedores da história do Grammy. Mesmo que se possa fazer críticas muito bem embasadas (e que concordo) de que a academia seja racista, premiar Kanye não é um problema para eles. Se pensarmos em artistas de música popular (que não ganharam os prêmios como produtores), Ye está no top 4 maiores vencedores do Grammy da história — por enquanto — , e ao pensar em outras premiações, conta com mais de 200 vitórias. Definitivamente, Kanye West não é ignorável. Sem contar sua contribuição para o mundo da moda e do espetáculo. Mas o que faz de Kanye tão grande? O que ele tem em comum com outros grandes artistas?

REVOLUÇÃO

Se pensarmos em Van Gogh, no blues, no movimento grunge, entre outros, e hoje, no funk, todos têm algo em comum: quebrar as estruturas do que vem sendo feito e trazem algo novo, original e inovador. São casos de arte não conservadoras, que não estão presas no mainstream preestabelecido pela indústria e rompem com as estruturas de suas épocas.

Trazendo novamente o exemplo de Van Gogh em seu contexto temporal, pinturas mais realistas eram características nos séculos anteriores a ele, porém como dito no nosso texto HC1 — O Primeiro Cinema, no século XIX a fotografia foi inventada e aperfeiçoada, logo, neste período o artista não era mais tão necessário para retratar a realidade como vista, e é neste cenário que Van Gogh pinta o que sentia, não apenas o que via.

É claro que existem outros artistas e movimentos que influenciam todo o contexto da época para que aconteça o movimento pós impressionista, mas é possível ter em Van Gogh um marco onde — a partir daí — diversos artistas se inspiram em sua obra até hoje. Ali, houve uma revolução no modo de fazer arte. O pintor, agora, surge como uma expressão que não evoca retratar a realidade, mas sim, retratar sua individualidade e originalidade, em uma estética distinta dos padrões da época.

Essa quebra de padrões é característica de revoluções culturais que trazem novos movimentos e modos de pensar. O movimento punk na Inglaterra, e o grunge em Seattle nos Estados Unidos (dada a diferença temporal de cada um) seguem este padrão de contracultura no que seria o Rock n’ Roll até então. O Hip Hop como movimento de expressão de pessoas pretas também faz isso por si só. Porém dentro do gênero, mais especificamente, cada álbum de Kanye West faz isso, praticamente criando um subgênero novo, seguido por gerações posteriores do rap, ou então elevam o gênero para o mainstream como nunca antes feito. E traremos um exemplo para tentar exemplificar este ponto que diferencia o artista.

Utilizando do contexto do rock, como gênero musical, novamente, temos no que se conhece por Rock n’ Roll um grande gênero extremamente abrangente, e em diferentes países, cidades e anos, houveram revoluções que marcaram o grande gênero, dando início a uma nova onda por meio de conceito, estilo e sonoridades diferentes.

Na grande árvore do Rock, que tem sua raiz no blues, temos diversas ramificações onde podemos ousar pontuar os maiores marcos. Falando do que é mais popular, apenas para exemplificar, Pink Floyd pode ser considerado o maior marco do Rock Progressita. Em Nirvana (jutamente com Pearl Jam, Alice in Chains e Soundgarden), temos o marco e início do movimento grunge. Sex Pistols e The Clash têm a mesma relevância, porém, com o movimento punk. Entre outras milhares de subdivisões que sempre conseguimos pensar em bandas características que marcam a história e a modifique a partir dela.

Agora, se pensarmos no movimento Hip Hop e, musicalmente, no Rap, (que hoje, é o gênero mais popular do planeta, ultrapassando pela primeira vez na história a hegemonia do Rock n’ Roll) podemos pontuar revoluções e novos gêneros, com a mesma importância inovadora que as bandas que citei utilizando apenas álbuns de um único artista: Kanye West.

Absolutamente tudo o que você ouve hoje de Rap tem, em algum grau, a influência de Ye. Nunca é possível saber o que virá da mente criativa por trás de “My Beautiful Dark Twisted Fantasy”. E este é o fator que consideramos o ponto principal para o que foi afirmado, por isso, vamos comentar, um a um, a obra por trás do homem.

I. THE COLLEGE DROPOUT (2004)

They said you can rap about anything except for Jesus. That means guns, sex, lies, video tape.
But if I talk about God my record won’t get played, huh?

Arte da capa de The College Dropout — Kanye West (2004)

Após um acidente de carro que quebrou sua mandíbula em 3 pedaços, Kanye sobreviveu e, ao mudar sua vida, mudou toda a história da música que viria após ele. Antes de estar diante dos microfones, Kanye produziu “The Blueprint” (2001) de Jay-Z, um dos álbuns mais importantes da história do Rap, mas Kanye tem o que faz artistas não pararem: a vontade de se expressar.

Ye já pensava em lançar “Late Registration” (2005) antes mesmo de ter “The College Dropout” pronto. O artista já sabia como queria construir e contar sua história, e para isso, precisava começar, e em seu primeiro single, Two Worlds, Kanye já mostra para o que veio. Aqui, há a combinação do Rap que está presente nas ruas somado a mensagens conscientes. Kanye queria ser a ponte entre o rap “real” e o luxuoso, como eram chamados, (e que era o que fazia mais sucesso na época), enquanto atingia diferentes demografias. Aqui está seu primeiro marco: Ye conseguiu.

Em 10 de fevereiro de 2004, “The Colege Droupout” lança, e fala sobre seguir o que seu coração manda, impor sua vontade e se lançar no mundo, como sua mãe, Donda West, o incentiva. Essa história é contada através da dualidade do que se fazia no rap naquele momento, com a soma do que se fazia anteriormente.

Ainda com a mandíbula quebrada, Kanye afirma ter ideias para finalizar o álbum no hospital, e assim que pôde falar novamente, 2 semanas após o acidente, foi gravado Through The Wire, onde segundo ele mesmo, foi a música que “o mostrou como um ser humano”, onde se pode ouvir a dificuldade do rapper em falar por conta das cirurgias. Mas após o humano, ainda há o lado divino para ser mostrado.

Para isso, Kanye escreve Jesus Walks num mundo onde se ouvia que “não se pode fazer um rap sobre Jesus”, como se o movimento (que tem origem preta e pobre) fosse proibido de cantar sobre religião. Acontece que o artista simplesmente ignora o que é preestabelecido, e então, Ye ganha o Grammy de Melhor Canção de Rap já em seu álbum de estreia enquanto simultaneamente é indicado a melhor artista gospel pela mesma música, ainda que não o seja (ainda), pela BET Awards.

Em “The College Dropout”, Kanye também chama Jamie Foxx (que não cantava ainda), ao encontrá-lo em uma festa, e aqui já temos uma participação inesperada do que viria a ser descoberto como um grande cantor no futuro (ver o filme “Ray”— 2004). O álbum ainda conta com a recordista de vendas All Falls Down, e Never Let Me Down com participação de Jay Z.

Novamente, sobre a dualidade presente no álbum, a capa representa o tema brilhantemente. Aqui, temos o mascote de torcida que, geralmente, é animado, sentado e cansado, demonstrando o peso de ser quem é o responsável pelo entretenimento de quem está ao seu redor.

The College Dropout” já colocou Kanye West entre os maiores da história, sendo nomeado para 10 Grammys, incluindo álbum do ano, já em seu disco de estreia. Um clássico instantâneo.

II. LATE REGISTRATION (2005)

I gotta testify
Come up in the spot looking extra fly
‘Fore the day I die, I’ma touch the sky

Arte da capa de Late Registration — Kanye West (2005)

Agora, “Grammy winner”, já consolidado e vendendo milhões de cópias, “Late Registration” — que já foi pensado pelo artista previamente — é lançado com altas expectativas. Aqui, Kanye queria elevar o Rap para outro nível, utilizando orquestras junto do beat, fugindo do chamado “keep it simple” tão difundido na época, uma vez que a mensagem era o importante.

Ye quis trazer a grandeza para o hip hop. Ao buscar multi instrumentistas para as gravações, Kanye adiciona instrumentos nunca utilizados antes no rap, com diversos músicos de gêneros completamente distintos.

Liricamente, “Late Registration” traz mais críticas sociais que seu antecessor, e novamente há participações gigantes (características nos álbuns de Kanye), como Nas, Jay Z, Jamie Foxx (agora interpretando Ray Charles) e até mesmo Adam Levine, e aqui, já temos uma música para Donda. Desta vez, o lançamento foi nomeado para 8 grammys, ganhando 3.

Kanye, ao trazer a grandeza para o hip hop (ainda que em menor escala do que faria no futuro, em “My Beautiful Dark Twisted Fantasy”, que falaremos sobre isso) já estava definindo o caminho da música em seu segundo álbum. Pode-se afirmar que aqui há o início do que se viria a se chamar de rap progressivo, similar ao que Pink Floyd significa para o rock.

E por citar rock, deve-se lembrar de “Late Orchestration”, a gravação ao vivo onde o álbum foi executado em versões sinfônicas no Abbey Road Studio (sim, o dos Beatles), com uma orquestra formada apenas por mulheres, registrando a grandiosidade proposta desde a concepção do álbum.

III. GRADUATION (2007)

They say “he going crazy and we seen this before”
But I’m doing pretty good as far as geniuses go

Arte da capa de Graduation — Kanye West (2007)

Já afirmamos que “Late Registration” mudou o caminho do rap para sempre, porém ainda havia muito mais para crescer. Kanye participou de uma das maiores turnês das bandas U2 e Rolling Stones, chamadas de “Vertigo Tour”, e “A Bigger Bang Tour”, e agora, após a experiência vinda do “Rock de arena” o artista queria levar o rap para os estádios. Para isso, precisava trazer uma sonoridade mais moderna e popular, estar presente em festas, baladas, e nas rádios mainstream. E foi com um sample de Daft Punk, trazendo a sonoridade dos sintetizadores fortemente para o Hip Hop (que já acontecia antes com o gigante, Dr. Dre) é lançado Stronger, que figura no seletíssimo grupo de singles que possuem nove certificados de platina. E é após o lançamento de Stronger que o uso de sintetizadores com roupagem eletrônica se tornaram populares no rap como nunca antes.

O uso de samples aqui, também mira as estrelas, assim como todo o conceito do álbum, contando com Michael Jackson, Elton John (ainda como sample, por enquanto), Can e outras lendas da música.

Em Graduation, temos também explicitamente a relação de Kanye West e Jay-Z na música Big Brother. O autor de “The Blueprint” acreditava nele como rapper, produtor e amigo, e aqui temos um marco da relação de ambos que viria a se imortalizar em mais um clássico (que não trataremos aqui, por enquanto, ainda que seja grandioso) “Watch The Throne”.

‘round the same time of that Blueprint 1
And these beats in my pocket was that blueprint for him
I’d play my little songs in that old back room
He’d bob his head and say “Damn! Oh, that’s you?”

Jay-Z e Kanye West

O álbum também foi marcado pelo embate emblemático (ainda que amistoso) entre Kanye e 50 cent. “Graduation” seria lançado no mesmo dia que Curtis (2007), e ambos cresceram em cima desta disputa que viria a definir o caminho do gênero, e agora, posteriormente, já sabemos a relevância histórica da vitória em vendas e aclamação crítica de Ye.

Após “Graduation”, quase não existe mais o que seria chamado de “gangsta rap”, na época. O lançamento de “Graduation” consolida a inovação, e novamente revolução, no gênero. Tudo o que ouvimos agora no Hip Hop mainstream e, principalmente, o modo como os beats são produzidos só existem por causa de Kanye e seu terceiro álbum. Ye abriu o caminho para que o Hip Hop possa, finalmente, tomar o mundo, após décadas de domínio do rock. Se agora temos shows em estádios, arenas lotadas, e seu rapper favorito sendo headliner de festivais gigantes, saiba que grande parte disso se deve a “Graduation”.

E ao ganhar — novamente — o Grammy, Kanye afirma que iria ser o artista número um do mundo. E, de certo modo, ele estava certo.

IV. 808s & HEARTBREAK (2008)

“They don’t know what we been through. They don’t know about me and you.”

Arte da capa de 808s & Heartbreaks — Kanye West (2008)

No mesmo ano do grandioso lançamento de “Graduation”, Donda West falece devido a complicações por cirurgias estéticas, e no ano seguinte Kanye West encerra seu noivado com Alexis Phifer. Neste momento conturbado de sua vida, temas sensíveis são o carro chefe de “808s & Heartbreaks”.

A soma de taiko drums, com o domínio completo do 808 e auto-tune e grandes colaborações, colocam o álbum como mais um marco na história do Hip Hop. Aqui, temos músicas com a bateria de Phil Collins, participações de Lil Wayne e Kid Cudi, e ao pensarmos em sonoridade temos novamente uma enorme mudança na indústria, e por mais que eu prefira outros trabalhos do artista, provavelmente este seja o mais influente deles. Kanye inclusive, já agradeceu as dores que passou, por afirmar que sem elas não teria força para desafiar o pensamento tradicional como fez, mais uma vez, aqui.

As influências do minimalismo, do pop art, da arte experimental, e os trabalhos visuais em conjunto com Spike Jonz (diretor de Her — 2013), são sentidas até hoje. Jake Paine do HipHopDX compara o álbum black new wave de Kanye West com Dr. Dre. Se o boom-bap só existe e foi gigante por muitos anos graças a Dre, toda a sonoridade do rap atual só existe por conta de “808s & Heartbreak”.

Aqui, há a maior demonstração da humanidade e sentimentos do artista que lidava com suas perdas e luto. Se antes o Hip Hop se apoiava na demonstração de força e masculinidade, e falava mais da realidade social do que de sentimentos, a vulnerabilidade exposta de Kanye West desmorona o pensamento dominante ao tratar do que lhe é sensível em primeiro plano. Se em “Graduation” o Rap sai das ruas e alcança as grandes arenas, aqui, atinge o coração.

Pode-se afirmar que “808s & Heartbreaks” foi o grande precursor de experimentações melódicas e inclusão de temas sensíveis no Hip Hop. Em diversas entrevistas, nomes que hoje são gigantes da indústria, colocam o álbum como a maior influência e o que abriu os caminhos para o que fazem hoje. Abel (The Weeknd), Travis Scott, ASAP Rocky, Tyler — The Creator, Future, Childish Gambino, Frank Ocean, e inclusive Drake, fazem parte de um segmento do gênero que só existe graças a revolução sonora que aconteceu em “808s & Heartbreaks”.

Esta é apenas a primeira parte de uma sequência da discografia de Kanye West e todas as revoluções que impactaram o mundo de maneira irreversível. No futuro, iremos comentar sobre as colaborações, samples, o uso da voz, o impacto na moda, até Donda. No próximo iniciaremos com: “MY BEAUTIFUL DARK TWISTED FANTASY”.

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