Por que assistir filmes “estrangeiros” e “antigos”?

Argos Crítica
9 min readJun 29, 2021

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Por: Carlos Anselmi

Há muito tempo (principalmente após as guerras mundiais) consumimos muito da cultura estadunidense, e o que para muitos é chamado de globalização, se olhado a partir de outra perspectiva, pode ser visto apenas como uma forma de imperialismo. Há um certo estigma que as produções caríssimas de Hollywood tem maior valor, enquanto obras latinas são comumente citadas como “bregas” ou de “menor qualidade”, seja lá o que isso queira dizer. Mas qual critério faria com que esse tipo de afirmação fizesse sentido (que não seja apenas o dinheiro investido)?

La Noire De — Ousmane Sembène (1966)

1. Filmes internacionais

Há respostas que explicam estes fenômenos como forma do imperialismo agindo socialmente de modo coletivo (o que é certo), mas esse texto — particularmente — é uma experiência pessoal, vindo de mim para você que lê, portanto, os questionamentos são mais individuais sobre preferência, nesse instante.

Não discordo totalmente (e foco no “totalmente”) de que é possível trazer alguma objetividade ao analisar uma obra (para a opinião completa leia esse texto). Mas nesse sentido, não existe um critério plausível para apenas consumir produtos dos EUA. É razoável a hipótese de que esse padrão de consumo é imposto de cima para baixo, há maior propaganda e facilidade de acesso, mas por que isso afetaria especificamente nossa preferência individual enquanto consumidor consciente do que está sendo assistido? É como se estivéssemos acostumados a comer sempre algo industrializado vindo dos EUA, e assumíssemos que não gostaríamos tanto de outras comidas sem ao menos experimentar os diferentes pratos.

No cinema, há então o que é chamado de “filmes estrangeiros”. Se pensarmos no significado da palavra “estrangeiro”, temos “o que é de outro país, proveniente, ou característico de outra nação”, e novamente somos levados a chamar de filmes estrangeiros não apenas o que é de fora do Brasil, — e que faria sentido — mas também o que é de fora dos países de lingua inglesa. Se pensarmos no Oscar, uma das maiores premiações existentes, (e estadunidense) há uma categoria específica para o que até então era chamado de “Melhor Filme Estrangeiro”, há então um sentimento de que existe os Estados Unidos (unidos pela língua com Reino Unido e Canadá) e existe “o resto do mundo”.

Para tanto, segundo a academia, o termo estrangeiro estava “desatualizado na comunidade cinematográfica global”, e o novo nome, que seria filme internacional, “representa melhor esta categoria e promove uma visão positiva e inclusiva da produção cinematográfica e da arte do cinema como uma experiência universal”. Faz sentido que uma premiação sediada nos Estados Unidos tenha uma categoria para obras que não são nacionais, segundo o sentido do que é estrangeiro? Neste caso sim, mas não faz sentido reproduzir o mesmo critério para o que é internacional, sendo que nossa nação não é aquela.

Ran (1985), Akira Kurosawa

Se pensamos pelo viés da representação cultural, já li que “filmes dos Estados Unidos são mais fáceis de assimilar por padrões culturais que se assemelham”, mas será isso mesmo? Se pensarmos, por exemplo, nas comédias “coming of age” passadas em escolas (e eu usando termos em inglês), a realidade de líderes de torcida, atletas buscando bolsas de estudos, grupos de tribos isoladas e rivais não é o que temos aqui. Posso afirmar que temos muito mais em comum com qualquer outro país latino americano do que com este tipo de representação. Então, é possível argumentar que a fácil assimilação não se dá por padrões próximos, mas sim por costume de consumo. Então, por que não tentar coisas mais diferentes, visto que o que é mais consumido já é diferente do que vivemos? Se já estamos falando de realidades que não são como a nossa por questões sociais e geográficas, por que não falar das geracionais?

2. Filmes “antigos”

A segunda parte deste texto (e obrigado se você chegou até aqui) é relacionada ao que é chamado de “filme velho” ou “filme antigo”. Novamente, é muito comum ouvirmos “não gosto de filme antigo”, e mais uma vez eu questiono: qual é a definição de um filme antigo? Seria um padrão estético?

Se pensarmos em ‘2001 — Uma Odisséia no Espaço’, de Stanley Kubrick, arrisco afirmar que, se fosse lançado hoje, ainda seria uma experiência estética surpreendente. E analogamente, há filmes mais recentes ou “atuais”, que emulam a estética mais comum em outras épocas, como a fotografia monocromática (preto e branco), como as obras mais recentes de Paweł Pawlikowski, ou ‘O Artista’ de 2011, ‘O Farol’ de 2019 e ‘Mank’ de 2020. Então, se o critério for estético, a “idade” do filme já não é tão relevante assim. Seria, então, a partir do ano x ou y? Mas por que ignorar um filme pela sua “idade”?

Cena de ‘2001 — Uma Odisséia no Espaço’ (1968), Stanley Kubrick

Uma obra pode ser revolucionária em determinada época e parecer “datada” depois. Se pensarmos em Marvel, por exemplo, o primeiro Hulk de 2003 tem efeitos que parecem “datados” (não gosto desta palavra, mas vou usar por razões didáticas), enquanto os últimos Vingadores (ainda) não, mas um dia pode parecer. E novamente, ‘2001 — Uma Odisséia no Espaço’ tem mais de 50 anos e seus efeitos ainda são surpreendentes. Seria, então, sobre o tema? Porque, novamente, existem obras de diferentes períodos que falam sobre histórias antigas, sobre futuro e presente em qualquer período do tempo.

Portanto, seria natural ouvir “eu não gosto de assistir a filmes mudos (sem diálogo falado audível) e em preto e branco” já a afirmação “eu não gosto de filmes antigos” não tanto, uma vez que generaliza um tipo de experiência a partir de valores que não são gerais. Entendo que estou trazendo exceções à regra, e isso pode parecer apenas rigor com as palavras (que eu assumo que tenho) mas o intuito não é invalidar essa opinião, e sim propor uma nova abordagem a partir de um outro meio de enxergar essas obras para além do que elas são esteticamente ou de quanto tempo se passou desde o lançamento. Portanto, agora finalmente faço minha parte do trabalho que me disponho a fazer por aqui: argumento que você (ou alguém que você conhecer e pode mandar este texto) está perdendo muita, mas muita, coisa legal.

3. A arte e a nossa experiência

Vamos lá: além do que vemos, algo fundamental na experiência de ver um filme é o que sentimos. O cinema é uma janela para outra realidade, e ao aceitarmos ver um filme, é como se firmássemos um acordo de empatia que pode gerar emoções a partir daí, e pode até ampliar nossa visão de mundo. Estamos vendo uma história contada com um propósito no qual concordamos estar abertos para ouvir, seja para rir, chorar, sentir medo, raiva, estranheza e até mesmo sem saber o que esperar.

Para Fellini, um dos maiores diretores da história do Cinema, e o maior vencedor do Oscar de Melhor Filme Estrangeiro “um escritor, um pintor, que conseguiram fixar numa página ou num quadro um sentimento das coisas do mundo, uma visão que durará para sempre, comunicam uma emoção profunda.” Ao usarmos a mesma lógica, o cinema — como arte — pode nos proporcionar emoções ao nos sentimos empáticos por alguém, seja o personagem, seja o realizador que nos identificamos. Neste caso, a humanidade de cada um é atemporal e sem limites geográficos.

Se pensarmos então em pinturas, gostaria de propor uma reflexão. Imagine uma obra que você queira muito ver pessoalmente. Particularmente, penso em Da Vinci e Van Gogh em um primeiro instante. O que faz com que queiramos ver essas obras? Estes quadros (no caso de Da Vinci, todos pintados a mais de 500 anos) nos trazem emoções e fazem parte de um período da história no qual ouvimos falar. Ninguém pensou em uma determinada obra à toa, só é possível pensar em uma obra que você já tenha ouvido falar antes. Ou seja, nossa sensação e o desejo de ver algo está diretamente ligado com o que temos de informação ou conhecimento sobre o que ela é. Portanto, arrisco dizer que, talvez o que falta para se aventurar em um mundo de filmes internacionais (não apenas estadunidenses) e antigos é nosso interesse e um pouco de entendimento do contexto para que a experiência seja melhor.

Ainda neste ponto, há uma crítica que gostaria de fazer por algo que vi nas redes sociais e gostaria de trazer aqui, visto que se encaixa no contexto. Há um tempo, vi uma postagem onde havia duas imagens, a primeira sendo ‘Abaporu’ da Tarsila do Amaral, e a segunda uma pintura renascentista com pessoas realistas. Com as imagens havia a frase “isso é um rabisco/isso é arte” e comentários como “se esse negócio feio é arte, eu também sou artista”. Na verdade, isso diz mais sobre a pessoa do que sobre as obras. O porquê de a ‘Abaporu’ ser daquele jeito, o contexto da obra, o significado e sua importância histórica foi ignorada. Se nos prendemos apenas em nossa experiência de que “arte é subjetiva” (também é, mas não apenas), esse tipo de comentário (que carrega preconceitos, mais profundamente), pode parecer válido. Pode até ser honesto, mas é razoável assumir que, em cenários assim, há uma certa limitação (no sentido de não entender além do que é visto) em quem a reproduz, e também uma ideia enviesada da compreensão do que é arte, por julgar apenas a partir de um ponto único.

Abaporu (1928), Tarsila do Amaral

Por isso, gostaria de propor uma experiência com você, leitor. Essa semana (se for possível), assista a um filme antigo e estrangeiro, em uma língua que você não é fluente, de um país que você não está habituado a consumir as obras e de uma época em que você não era nascido. Eu aposto que, mesmo que você não goste — e é natural não gostar de qualquer filme — a experiência será interessante. Mas aqui entra o maior desafio: por que ficar apenas na subjetividade da experiência individual?

Assim como no exemplo das pinturas, o que pode melhorar sua experiência e o modo como você enxerga esse — e outros — filmes está intimamente ligado com o que você sabe sobre eles. Então desta vez, quando acabar o filme pesquise um pouco sobre a obra. Veja quem é o diretor, de que país ele é e qual ano o filme foi produzido. Qual era o contexto político dessa época? Leia algumas críticas e converse com amigos (se não tiver ninguém para isso, pode chamar a gente da página). A experiência com certeza é outra.

Se escolher um filme mais conhecido dentro dos pontos que foram indicados é muito provável que a obra esteja intimamente ligada ao contexto histórico, e isso vai expandir sua experiência e muitas críticas trarão informações sobre isso antes da opinião do autor.

No início, se não é seu costume, a experiência pode parecer sem sentido. Por que fazer isso? Além do que eu já te disse, sobre como pode ser uma experiência diferente e podermos aprender assim, acredito que a pergunta certa deveria ser “por que não?” e não “por que sim?”. Dê uma chance para estas obras, se não for um filme legal para você, é apenas mais um filme que não irá gostar em meio a tantos outros que podemos não gostar no futuro. Mas, se for algo bom pra você, só tens o que ganhar. E, talvez, esse seja o início de um caminho para um novo gosto que você pode adquirir.

Pensando neste valor que tenho tão caro comigo, e aproveitando a volta da página deste período de descanso (e trabalho), gostaria de divulgar que meus próximos textos tratarão -em sua maioria- sobre história do cinema. Trarei textos sobre filmes específicos, todos já selecionados depois de muito estudo em um longo período de tempo, e postarei cronologicamente separando as obras por países, movimentos, e seu contexto histórico. Espero que aprendamos muito juntos nessa nova etapa que se inicia na Argos.

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