O QUÃO IMPORTANTE É A REALIDADE? (Scalene — Vai Ver, e Cópia Fiel)
Por: Carlos Anselmi
Em 2019, a banda brasileira Scalene lançou o álbum “Respiro” que abre com a faixa Vai Ver, e, ao ouvir a música, um verso chama a atenção:
“Sei lá o quão relevante é ser real, ou não, essa ilusão”
É curioso o ponto colocado aqui. O quão relevante é saber se algo (que aqui já é assumido como ilusão) é real ou não? Como definir o que é real, uma vez que muitas crenças não são falseáveis? E, individualmente, por que fazer isso? E para falar disso, antes, precisamos abordar alguns temas.
*Antes de continuar, gostaria apenas de deixar um disclaimer importante de ser feito. Aqui, pelo menos por este que te escreve, trato de pequenas crenças ou ilusões que nos ajudam a seguir, algo que podemos nos apegar. Pseudociência não são “crenças” que se enquadram na mensagem deste texto. Vacinas, como o exemplo mais óbvio, são reais e eficazes. A importância de entender o que são fatos é essencial. Não queremos propagar uma mensagem que se assemelhe a “eu acredito, então é válido”, algumas coisas simplesmente não funcionam assim. Continuemos.*
I. Realidade e significado
O que é real? Se pensarmos na etimologia da palavra (realitas), significa literalmente “coisa”, ou seja, tudo o que é, existe. Mas e no mundo das ideias? O não físico, o intangível existe em que nível? Sendo, ou não, uma ilusão, a ideia ou conceito existe intra-mentis, e como existe: é real. Então a questão mais interessante aqui, seria “É verdadeiro?”, “Qual o significado disso?”.
Como discutido mais a fundo no texto Uma Conversa Sobre Legado: A Ghost Story e Brás Cubas, o significado (como valor) de algo é dado pela pessoa que está em contato com o objeto. E a música tem sua existência assim. Uma música lançada é como um filho, ela vem de você, das suas expectativas e mente, e carrega traços do seu DNA (em um caso figurativo, e em outro literal). Mas uma vez que está no mundo, é do mundo, e vai ser moldada e relida de acordo com outras realidades.
Ao escrevemos música (algo que também faço), o significado da letra existe mas não é fixo, e uma frase que imaginamos de um jeito durante a concepção pode ter um significado completamente diferente para quem a recebe. Ou seja, a própria realidade da mensagem é (em algum grau de percepção) volátil.
É claro que existem mensagens mais claras e diretas, mas não estamos tratando exatamente destes casos aqui. O que queremos pontuar é: é importante, realmente, buscar uma realidade inerente em tudo? Por que não aproveitarmos o processo, nossos apegos, e ilusões em um conforto de sentimentos? E é justamente isso que Vai Ver propõe na própria música.
No “faixa a faixa”, onde a banda comenta o processo de criação das músicas, o baixista da banda, Lukão, afirma que a letra da música “fala sobre você criar a sua realidade, baseada na realidade de onde você está e ficar feliz nela, com as coisas que você se identifica. Com as coisas que você entende”. E o que é interessante, e reforça o que foi discutido aqui anteriormente, é a conclusão da frase “eu encaro ela dessa forma, pelo menos”. É importante que autor saiba que sua obra é livre para interpretação no mundo.
Gustavo Bertoni, vocalista e guitarrista da banda, também fala abertamente da ideia para a concepção da letra, sobre entender nossas crenças e ilusões de modo a perceber o que pode nos ajudar e fortalecer, conscientemente. O vídeo completo pode ser assistido aqui, e é interessante como o próprio tema do significado subjetivo está presente no conceito do que é realidade proposto como tema da letra.
Talvez, o necessário é aproveitar os momentos e o sentimento compartilhado com as pessoas que amamos. O amor não é palpável, não é físico, não é coisa. Mas ainda assim, quem ousaria dizer que não é real? E mesmo que não seja: isso importa?
O bom é se encontrar além. Seja onde for, eu quero o seu amor.
Outras obras abordam o tema de modo diferente, e ainda questiona o amor, a realidade e a importância da mesma. Continuemos aqui.
II. Copie Conforme (Cópia Fiel, 2010)
Em entrevista, Abbas Kiarostami afirma que o amor é uma ilusão, pois se não, todos se apaixonariam apenas pelo “original”, nas palavras do diretor, ignorando o processo de imaginar como a pessoa realmente é. O que projetamos — a partir de nós mesmos — no outro (e que vem de não contemplar a realidade de um ser em completude) nos coloca no papel de imaginar a totalidade de modo a amarmos uma ideia. O amor existe quando atribuímos algo para alguém. E é neste conceito que o diretor usa do cinema para questionar amor, ilusão, realidade e sua importância. Veja a fala completa e legendada aqui.
Com isso, um dos temas mais presentes do “Iranian New Wave”, movimento que revolucionou o cinema no país, é, justamente, borrar as linhas que definem o que é drama ou documentário, o que é real e o que é ficcional.
Após a revolução islâmica, o cinema iraniano tomou novos rumos e Abbas Kiarostami é um dos nomes mais notáveis do movimento. Em sua obra “Cópia Fiel”, de 2010, o diretor questiona a importância da originalidade, e brinca com a realidade do que vemos.
Ao publicar um livro, James Miller (William Shimell) questiona o valor (e a existência) da originalidade. Uma réplica perfeita de uma escultura faz do artista que a esculpiu menos artista? Do mesmo modo que a “original” foi inspirada em uma pessoa, por que uma outra obra não pode se inspirar em uma preexistente? James acredita que o que importa é o que se sente ao admirar uma obra, ela sendo considerada “original” ou não. O significado se dá na contemplação do objeto, e não no objeto por si só, até porque, o que seria da arte sem ninguém para admirá-la?
E é a partir deste ponto de partida que Kiarostami trabalha o mesmo conceito do protagonista com o uso da linguagem cinematográfica por meio da nossa própria percepção. James conhece (?) Elle (Juliette Binoche), e ao saírem juntos para um café são confundidos (?) com um casal que está junto há bastante tempo. A partir daí, ambos embarcam na brincadeira de fingir (?) ser um casal. O uso das interrogações aqui, já deixa claro a proposta do filme: não temos certeza do que é real ou não.
Acontece que, na projeção, são deixadas mensagens contraditórias sobre quem os personagens verdadeiramente são, o que sabem e o que fazem. Um afirma não conhecer um idioma, mas em seguida sabe o falar e compreender; outro briga por um passado supostamente inexistente mas chora com muita convicção, memórias e possíveis criações são misturadas, entre outras pistas. A partir daí, para nós, fica impossível afirmar se este é um casal antigo realmente, se acabaram de se conhecer e estão fingindo, ou se são realmente o casal antigo mas que também estão apenas brincando com a realidade.
Assim, a nossa experiência como espectador e a própria experiência do casal reforçam o ponto inicial do livro de James. O que sentimos ao ver a obra, nossa emoção e admiração é real, mesmo que não saibamos a realidade daquele encontro. O sentimento entre James e Elle é real, e independe da história prévia ser real ou encenada. Então, não é exatamente o sentimento que nos importa?
Todas as obras comentadas aqui, a letra da música, o filme, o livro dentro do filme e este próprio texto implicitamente, utilizam deste conceito para nos questionar em relação ao que vemos e imaginamos como real. Precisamos de certezas para tudo? Precisamos conhecer a realidade de tudo ou, simplesmente, precisamos sentir mais?
Se o significado for real, que faça sentido dentro de nós.
It seems to me that the human race is the only species who have forgotten the whole purpose of life. The whole meaning of existence is to have fun, to have pleasure.