O Cinema Novo em Deus e o Diabo na Terra do Sol

Argos Crítica
6 min readFeb 8, 2021

--

Por: Carlos Anselmi

“O sertão vai virar mar, e o mar vai virar sertão”

Deus e o Diabo na Terra do Sol (1964) foi eleito o segundo melhor filme nacional de todos os tempos segundo a Associação Brasileira de Críticos de Cinema, estando apenas atrás de Limite (1931) de Mário Peixoto. Ao assistir a este filme, quase 60 anos depois do seu lançamento, sabendo de suas intenções e escolha de linguagem, a razão dessa colocação na lista se faz clara. Porém, para deixar este cenário mais transparente é preciso falar antes sobre o contexto histórico do cinema na sociedade.

Poster do filme Deus e o Diabo na Terra do Sol (1964), de Glauber Rocha

PARTI I — Contexto Histórico

Se a “Era de Ouro” do Cinema estadunidense se compreende dos anos 20 aos anos 60, com o sucesso dos filmes de grandes estúdios como a MGM, Warner Bors, RKO, entre outros, é porque a situação social e econômica do país teve grande influência para que assim o fosse. Após a crise do capitalismo com a Grande Depressão, a arte servia tanto de alento, como de ferramenta para elevar a moral em declínio da população. E é neste cenário que os grandes musicais chegam ao auge na década de 50, como “Singin’ in the Rain” (1952), assim como clássicos que exaltam a beleza feminina padronizada da época, com Marilyn Monroe e Audrey Hepburn, seguido pelos grandes épicos até a década de 60, como The Ten Commandments (1956), Lawrence of Arábia (1962) e Cleópatra (1963).

Neste período havia um estilo de linguagem claro, com um método de edição contido para ser quase despercebido e sutil, o contrário do que se via no Cinema Soviético. Na contramão dessa padronização fantasiosa hollywoodiana, surgiu o movimento Nouvelle Vague (ou: Nova Onda) na França, onde a técnica era usada como parte do modo de contar a história, desconstruindo as convenções previamente estabelecidas, e fazendo com que o cineasta contasse a história não apenas com o roteiro mas também através da técnica, a caméra-stylo. A intenção do movimento francês, por sua vez, teve influência do Neorrealismo italiano, usando o cinema como ferramenta para apontar os problemas sociais e locais, e não apenas como entretenimento.

Com o bombardeio do maior estúdio da Itália, a Cinecittà, o Cinema italiano pós segunda guerra retratava a realidade com a intenção de explicitar um país em crise como ele é. Assim, nos filmes deste movimento nota-se a iluminação natural, tomadas gravadas em locações reais, atores não profissionais e não-atores, e poucos equipamentos. Mas o que tudo isso tem a ver com o Brasil?

Na década de 50 e 60 contemporaneamente a chamada “Era de Ouro” dos EUA, o Cinema brasileiro buscava se enquadrar nos padrões hollywoodianos, com comédias não críticas e tentando incorporar a estética estadunidense. Porém, simultaneamente, o Brasil caminhava para o golpe militar em uma onda fascista no país. Nesse contexto, era necessário um Cinema que mostrasse a realidade social, abandonando a estética importada dos Estados Unidos e focado no local, assim como o Neorrealismo italiano. Daí então, surge o Cinema Novo.

Esta fase do Cinema brasileiro tem como inspiração os movimentos Nouvelle Vague francês e o Neorrealismo italiano, escolas que vão na contramão das ideias da linguagem hollywoodiana. Estes movimentos aproximam as histórias contadas com a sociedade, e fala de problemas internos para a própria sociedade. E um dos maiores exemplares desta fase do Cinema nacional é o próprio “Deus e o Diabo na Terra do Sol”.

PARTE II — Deus e o Diabo na Terra do Sol

Cena de abertura do trailer de Deus e o Diabo na Terra do Sol (1964)

Glauber Rocha, segue o conceito de “uma câmera na mão e uma ideia na cabeça”, e com baixo orçamento, faz uma crítica política da realidade do sertão. Aqui, a montagem, a fotografia, a trilha sonora, e em resumo, o que compõe a linguagem cinematográfica do filme são propositalmente diferentes do padrão estadunidense, gera incômodo e cria um estilo próprio e novo.

O filme conta a história de Manuel, um homem que, colocado em uma situação injusta de opressão, assassina o homem que o prejudicou. A partir disso, o homem injustiçado foge buscando uma salvação, e é através dele que somos apresentados ao mundo sertanejo criado por Glauber. O protagonista-observador é colocado em situações de violência, fome, e messianismo (não necessariamente nessa ordem) com críticas políticas claras e objetivas permeando todo o roteiro.

Neste filme, algo que fica muito claro é o conceito da dialética, já presente no próprio título do filme, inclusive em sua tradução inglesa “Black God, White Devil”. Aqui, a dualidade não é apenas tema, mas também linguagem, e assim como o movimento francês, essas escolhas tem um propósito de contar a história e não apenas “apoiar” o roteiro.

Analisando a fotografia, por exemplo, o contraste é muito alto. Cenas em locais abertos tem o céu totalmente branco, enquanto cenas em locações fechadas (como a do padre e o sacrafício) são completamente escuras, essa dicotomia não é apenas estilo, é mais uma forma de representar a dialética pretendida pro Glauber.

À esquerda o céu completamente branco na locação aberta. À direita, a cena escura repleta de sombras na locação fechada

Os próprios personagens também são repletos de camadas que sempre variam entre o que é justo ou não (dependendo do contexto, e do que é justo dentro da sua motivação). Manuel (Geraldo Del Rey), Coristo (Maurício do Valle) e Rosa (Yoná Magalhães) tem papel de vítima e também de opressor (ou seria apenas resposta do oprimido?) intercalando em algum momento. Isso também funciona para dar profundidade aos personagens e ao universo criado. O próprio Antônio das Mortes (Maurício do Valle), ganharia um filme próprio no futuro em “O Dragão da Maldade contra o Santo Guerreiro”.

Este tema da dualidade é presente também na própria interpretação. O filme conta com atores e também figurantes não atores, cenas em locais reais (assim como o neorrealismo), ao mesmo tempo que as interpretações são totalmente teatrais. Tudo isso ajuda no conceito de criar a própria estética, onde a montagem também tem fator essencial, com jump cuts brutos (que bebem do western italiano) em um padrão desregrado, para causar estranhamento.

Alinhado a tudo isso, a trilha sonora, que também mistura o clássico — com o próprio Villa Lobos — e o popular — narrando o filme na música — temos um filme brasileiro, feito aqui, por pessoas daqui, contando histórias daqui, com referências nossas e com uma estética completamente nova.

Glauber Rocha, em seu manifesto “Uma estética da fome” ou “Eztetyka da Fome”, apresentado durante o congresso Terceiro Mundo e Comunidade Mundial na Itália, deixa claro o objetivo do Cinema Novo, que foi brilhantemente representado no filme. Os problemas que são vistos no “terceiro mundo”, pelo colonizador, são tratados como primitivos. Já aqui, os nossos problemas são escancarados e mostrados com violência, não como algo inerente, como antes fora pintado, mas como algo causado. E a resposta para isso vem de dentro para fora, criando a partir do que a gente tem e é.

Deus e o Diabo na Terra do Sol não é um filme para agradar o colonizador, é um levante não passivo dos problemas que causaram no terceiro mundo. “A mais nobre manifestação cultural da fome é a violência” e em Deus e o Diabo na Terra do Sol o sertão virou mar.

--

--

Argos Crítica

Crítica de cinema e música. Nos sigam nas redes sociais @argoscritica.