A cena de abertura de Django: Unchained — um clássico atual
Por: Carlos Anselmi
A cena de abertura de um filme é importantíssima, é ali que todo o nosso interesse pode despertar ou simplesmente sumir. A primeira parte de um roteiro é o que pode definir, inclusive, se ele vai continuar sendo lido. Segundo Richard Brody, crítico de cinema da revista New Yorker, os primeiros cinco minutos podem não mostrar tudo o que devemos saber sobre um filme, mas já são o suficientes para nos mostrar o essencial e despertar a fome para ver o filme todo.
Um filme é a arte de contar histórias. Mas a história por si só é o que segura todo o desenvolvimento? Uma grande história pode ser desperdiçada em um filme mal executado, como “Dune” (Duna, 1984) e, por outro lado, histórias teoricamente simples podem virar obras-primas no contexto certo, por exemplo os filmes Shomin-geki (gênero japonês com histórias de cotidiano de pessoas comuns). Ou seja, o “como” também é fundamental ao contar a sua história, e grandes diretores sabem como fazer isso de maneira única.
Algumas cenas de abertura são icônicas, revolucionárias, e importantíssimas para a história do Cinema, como a genial introdução de “Godfather” (O Poderoso Chefão, 1972), “8½” (1963), ou “Goodfellas” (Os Bons Companheiros, 1990), para citar alguns que podereiam render textos e vídeos extremamente longos sobre a importância e significado de cada quadro. Hoje, então, traremos uma análise da cena de abertura de “Django: Unchained” (Django Livre, 2012), e tudo que ela já nos mostra sobre o filme.
Já se sabe da grande influência que o western spaghetti tem para o Cinema e para o cineasta Quentin Tarantino, e neste caso é ainda mais óbvio. O longa é inspirado na obra de Sergio Corbucci, “Django, O Bastardo”, de 1966, e o primeiro frame da obra de Tarantino já se inicia em conjunto com a mesma música que o filme dos anos 60, o tema “Django” de Rocky Roberts.
A cena de abertura na primeira obra mostra o personagem que leva o nome do filme de costas ao som do tema principal. O homem caminha pelo local de tons terrosos e clima seco com suas roupas características de um filme de velho-oeste (praticamente as mesmas usadas por Samuel L. Jackson em “Os Oito Odiados”, mas isso é um tema para o futuro). Vemos os pés dele ao caminhar e, em seguida, o que está sendo puxado pelo homem: um caixão.
Já na obra de tarantino, a câmera permanece estática no início, onde somos situados primeiramente ao ambiente e, somados com a mesma música, já sabemos que se trata de um western. Então, o movimento da câmera nos leva também para as costas de Django, que desta vez é um homem escravizado, e do mesmo modo que o caixão, está sendo puxado para algum destino que ainda não conhecemos, desta vez por dois homens a cavalo. Além da música e a rima visual, as fontes utilizadas também são as mesmas.
Já situados no ambiente e apresentados ao rosto do protagonista, agora vemos o mesmo grupo caminhando à noite, já cansados. Aqui vemos os pés de Django acorrentados, quando em seguida o grupo é interrompido por uma carruagem que é avistada vindo de encontro.
Um dos homens no cavalo questiona quem é o homem que chega na carroagem e o ameaça, enquanto isso vemos a carroagem se aproximando. Ao chegar, há um diálogo onde conhecemos o Doutor King Schultz, que se mostra educado, desenvolto com as palavras, rebruscado, e afirma ser alemão. Com palavras formais, e um pequeno truque com o cavalo, Dr. Schultz em poucos segundos já se mostra um personagem que gera curiosidade pelo diálogo.
O doutor está a procura de alguém que foi comprado como escravo, e que veio da fazenda Carrucan. Ouvimos “Eu venho da fazenda Carrucan” ao fundo, Dr. Schultz acende uma lanterna e vai de encontro com o homem que diz ter vindo de lá. É Django, e aqui temos a primeira interação entre a dupla. O dentista interroga o homem escravizado sobre dois irmãos quando é interrompido por um dos homens montados no cavalo.
O homem, irritado com as palavras de Dr. Schultz aponta uma arma para o dentista, e a carrega. Neste momento, após tentar dialogar, o doutor atira na cabeça do homem e no cavalo que leva o segundo mercador, os derrubando. Aqui, friamente, o alemão pede desculpas ao homem caído e volta a conversar com Django, que afirma que reconheceria os irmãos se os encontrasse. Neste momento, Dr. Shultz compra Django, o livra de suas correntes que avistamos anteriormente e pede para que coloque o casaco do homem morto para se aquecer.
O homem abaixo do cavalo grita com Django, mesmo ferido, e em resposta o herói pisa no cavalo, fazendo a dor do homem aumentar. Dr. Schultz então, paga o homem, pega o recibo, e vai de encontro com os outros homens escravizados. O dentista dá dicas de onde é o norte, conhecido por ser contra a escravidão, e aponta que é fácil se livrar dos mercadores. Django, agora, está montado no cavalo.
Esta cena dura aproximadamente 10 minutos, e nesse período já temos tudo o que precisamos para nos situar no filme. Conhecemos os personagens principais, seus nomes, parte de suas origens, como estão unidos e suas personalidades. Django é um homem escravizado, silencioso, forte e que reaje quando provocado. Dr. Schultz é um homem culto, contra a escravidão, que sabe usar o diálogo como sua maior arma, mas que não exita em usar o fogo quando necessário.
Aqui, todo o tema do filme está presente e o desenrolar da história é completamente fiel ao que vimos no inicio. Se pegarmos qualquer outra aventura da dupla (como a própria cena seguinte com maior foco em Schultz) que ocorre durante o filme, as mesmas características usadas anteriormente — com excessão de Django ser um homem escravizado — se aplicam da mesma maneira. Tarantino nos apresenta tudo o que precisamos em 10 minutos de filme, e consegue nos prender na história ao deixar pequenos pontos abertos: quem são os irmão que eles procuram? Como a relação da dupla acontecerá?
Assim que vemos a pisada sobre o cavalo, já sabemos: Django é um filme de vingança, mas não qualquer vingança, é a vingança de um homem escravizado. A temática da libertação de Django, ainda que com o auxílio do europeu, deixa claro que o herói é forte por conta própria, e sua libertação — assim como a de outros escravos — vem a partir da violência. E é aqui que Tarantino brilha. Neste western moderno, a exposição da violência não é à toa, é uma respota à violência real que estas pessoas sofreram, e sua libertação, com ganhos e perdas, é sentida e comemorada por quem assiste.
Como dito inicialmente, o “como” é parte fundamental ao contar a história, e Tarantino sabe como usar referências como homenagem e releituras de quem já fez história antes dele. Ao longo do filme vemos diversas rimas visuais com referências claras tanto de quadros como de outros filmes, como: Três Homens e Um Conflito (1966), E O Vento Levou (1939), Os Sete Samurais (1954) (que já é uma influência para o western no geral), Estrela de Fogo (1960), Os Cruéis (1967), entre outros.
Mas, o desenrolar da história é o que consagra a totalidade da obra. Em Django, temos a união de um roteiro (vencedor do Oscar) impecável, com uma fotografia irretocável repleta de referências, uma trilha sonora que une o western com o hip hop negro (muito antes de “Hotel Road”, rs), montagem ágil e precisa — característica do gênero — e atuações inesquecíveis.
Django Livre entre para a história do Cinema como um dos maiores nomes da modernidade, atualizando uma linguagem existente, reverenciando a bagagem que traz e fazendo tudo isso com um olhar aprofundado para a questão da escravidão nos Estados Unidos. Do mesmo modo que Django (1966) é um clássico, o atual também já é.